“Vencer sempre pode ser um inferno.”
Puta frase forte. Eu a li hoje num artigo da Folha Ilustrada (na íntegra, no fim do post), que falava sobre a Virgínia Wolf. Me fez lembrar que ainda quero ler alguma obra dela e assistir ao filme “As Horas”. E me fez lembrar de uma das edições do jornal laboratório que fizemos na faculdade, o Claro! Depressão. A ideia era discutir essa necessidade de ser feliz a todo custo – nem que seja à custa de uma caixa de Prozac.
Às vezes, eu me acho anormal por questionar tanto a minha vida, o que eu faço, a minha família, os valores, até as minhas vitórias (porque acredito no que a frase diz)… Faço isso constantemente porque não consigo fazer de conta que tá tudo 100%, que não sou hipócrita. Todos somos de alguma forma, em algum momento. E eu tento lutar contra a minha hipocrisia todo dia. Não que isso signifique uma vitória diária. Mas, pelo menos, isso faz de mim um pouco menos hipócrita.
Como diz a música, eu não consigo ser alegre o tempo inteiro. Eu não consigo tomar remédio pra não entrar na fossa, eu curto a fossa. Eu não faço festa quando tô morrendo por dentro, como faz a personagem de Wolf. Não faço porque acho que a melancolia, a tristeza fazem parte. Tem gente que não se permite isso, mas pode fazer o que for, a fossa, a melancolia e a tristeza continuam ali. Talvez, ainda piores porque você não consegue elaborá-las.
A busca pela felicidade não deve ser insana como é. Hoje, eu acredito que a busca pela felicidade está em se conhecer, e essa viagem, certamente, não trará só paisagens bonitas. Nós somos pura contradição, e a contradição tem o rosto desfigurado. O que falta na gente é humildade. Para ver a vida como uma bela dádiva disforme. Para aceitar nossa condição imperfeita. E tentar ser feliz com ela.
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Folha de S. Paulo – 12 de abril de 2010
“Mrs. Dalloway”
MORAVA EU num kibutz em Israel. No final do dia de trabalho físico extenuante, lia na porta do meu quarto, ensaiando meus primeiros cachimbos. Durante alguns meses devorei livros da escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941). Entre eles, um que me marcou excepcionalmente foi “Mrs. Dalloway”, publicado em 1925.
Revi o maravilhoso “As Horas” (2002), com Nicole Kidman. E sempre quando vejo esse filme me lembro de como ela foi essencial, ainda que de modo pontual, em minha visão de mundo. No fundo, sempre suspeitei de que cada dia é mais um dia sob o risco de ser devorado pelo sentimento último da melancolia.
Às vezes na vida se faz necessário rompimentos com o cotidiano para que possamos ver melhor o sentido do que fazemos, ou a total falta de sentido. A vida se degrada facilmente na rotina de tentar mantê-la funcionando, por isso a derrota, como no livro “Mito de Sísifo” (1942), de Albert Camus, pode ser a condição necessária para a consciência repousar em paz consigo mesma. Vencer sempre pode ser um inferno.
Na época, atravessando minha primeira (de várias) crises com minha formação médica então em curso, busquei fugir para alguma fronteira do mundo. Trabalhei no deserto do Neguev algumas vezes e posso dizer que o pôr do sol no deserto vazio é uma experiência de dar inveja. A possibilidade de caminhar pelo deserto, como me disse certa feita o escritor israelense Amós Oz, refaz a alma porque vemos nosso rosto refletido na poeira. O deserto nos ensina a humildade, e a humildade é sempre imbatível. Humildade nada tem a ver com humilhação, mas, ao contrário, humildade fala da consciência de que somos efêmeros como o vento. E só como efêmeros que podemos perceber a dádiva que é respirar. Há um modo misterioso em como o deserto chama seu nome quando você está disposto a ouvi-lo.
Na época, já sabia que Virginia Woolf havia se suicidado e, por isso mesmo, quis conhecer sua obra. Nunca fui um deprimido clínico, mas sempre me surpreendi pelo fato de não sê-lo. Muitas vezes pareceu-me que, se fosse viver pelo que a razão me diz, já teria sucumbido à melancolia profunda. O que me encantou em Mrs. Dalloway foi seu esforço em ser normal e feliz e acreditar em si mesma e na sua fidelidade à rotina. No dia em que se passa a história, ela organiza uma festa em sua casa. Manter a vida aí se equipara ao esforço descomunal de erguer uma festa quando, no fundo, ela se sente vazia e sem razões para festejar. Entre uma alma triste e uma rotina vazia, ela opta pela segunda como falta de escolha porque não pode confiar na tristeza.
Penso no número enorme de pessoas que se levantam pela manhã assim como quem carrega um corpo que não é seu. Mrs. Dalloway é o fim de quem ingenuamente acredita que as coisas sempre darão certo, bastando festejar a rotina comum. Não, a rotina é indiferente à nossa fidelidade, podendo nos destruir mesmo quando a servimos como a um senhor todo poderoso. O pesadelo de Mrs. Dalloway é se ver como estrangeira em sua própria alma.
Aprendemos com ela que a vida não é necessariamente bela e que tentar negar isso é uma forma de permanecer escravo de sua possível monstruosidade.
No fundo de nossa alma habitam monstros que a muito custo se mantêm em silêncio. Esses monstros, quando o mundo silencia, surgem na superfície mostrando o ridículo de nossa batalha diária.
Quantas vezes mulheres apenas suportam o choro de seus filhos, sofrendo no fundo da alma o horror que é ser obrigada a amá-los quando não sentem por eles nada parecido com amor materno, mas apenas o incômodo causado por aqueles pequenos intrusos em suas vidas.
Quantos homens sufocam diante da certeza de que já vivem uma vida sem amor, sem afeto e sem desejo, mas que isso é tudo que suportam ao lado de suas esposas. Quantos filhos sofrem por se sentir indiferentes para com o destino dos pais idosos, tentando convencer a si mesmos de que o amor pelos pais seria o certo, mas que nada conseguem além de desejar vê-los mortos e assim se sentirem livres finalmente.
Entre as funções da civilização, uma é a tentativa de calar esses monstros criando ritos, rituais, festas para celebrar a frágil vitória contra essas criaturas deformadas, atormentadas pelo completo desinteresse pela vida. A verdade é que não há como civilizá-las, a não ser ensiná-las que elas não têm lugar no mundo dos vivos e que, por isso, devem sucumbir à rotina da infelicidade como norma da vida.
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