Que lindo estava aquele dia! Céu azul e grama verde, ambos de cores tão vivas que até doía. A dor vinha do contraste com roupas listradas e sujas, de corpos raquíticos, de cabeças raspadas, de arames farpados, de fornos por onde o azul e o verde viraram cinzas e fumaça negra décadas atrás.
Visitar Auschwitz é perceber que a beleza é cruel, porque surge até em lugares como aquele, que eu imaginava ter ficado cinza para sempre. Fui para lá em Agosto de 2011, durante meu mochilão pelo Leste Europeu. Passando cinco dias na Cracóvia, na república onde morava a amiga de uma amiga polonesa, conhecer o maior e mais famoso campo de concentração nazista era parada obrigatória. Mas fui avisada antes de sair para o passeio: prepare-se para passar mal o resto do dia. Na volta, fui recebida pela Jaga com uma xícara de chá e um biscotinho. Ela sabia que eu ia precisar…
Da janela do ônibus, numa viagem de mais ou menos 1h30, eu via uma paisagem bucólica: árvores, casinhas de madeira, como casas de campo, flores, o Sol penetrando por entre as folhas. Não me conformava de que este era o caminho para Auschwitz! Não podia crer que, na cidadela onde fica o campo, chamada Oświęcim, ainda vivem pessoas que, aparentemente, levam uma vida normal e pacata. Como plantar hortaliças ou beber uma água que brota de uma terra onde tantos pereceram???? A vida segue…
Minha amiga Joanna passou parte da juventude tendo que trabalhar em Birkenau (no que sobrou do campo, conhecido também como Auschvitwz II) como parte do currículo escolar. Não se tratava de trabalho forçado, nem de morte compulsória, mas imagino cada nó no estômago que ela e seus colegas poloneses deviam sentir por terem que pisar naquela terra. Ela chegou a me mostrar algumas fotos desses “acampamentos”, mas só fui entender quando eu mesma cheguei lá.
Difícil falar sobre o que eu vi e ouvi. As tantas vezes que lágrimas correram pelo rosto ao tocar as paredes reais dos “alojamentos”, ao ver as beliches de madeira onde mal cabia uma pessoa deitada, ao saber que os colchões eram enchidos com os cabelos raspados dos homens e as tranças amputadas das mulheres. Lá estavam as malas com os poucos pertences que aquelas pessoas tinham que deixar para trás, malas cheias de esperança de que a viagem de trem até lá não teria a morte como destino. Os retratos de quem sofreu aquela humilhação estavam enfileirados pelos corredores. Cobriam todas as paredes. Era muita gente. Ouvi a guia dizer que já presenciou, mais de uma vez, turistas reconhecerem, naquelas fotos, parentes mortos pelo regime nazista.
Em um dos cantos do campo estavam os fornos onde os corpos eram queimados. As câmaras de gás. Quando já não cabiam mais execuções dentro e no entorno daqueles prédios de tijolinhos, criaram Auschvitz II, um descampadão só com barracões de madeira e câmaras de execução em massa. Virou uma fábrica de confinar e matar gente. Se não era com gás, morriam executados em frente ao muro de concreto (vi pessoas deixando flores por lá, uma cena das mais tristes, chorei com elas). Ou pior, judeus morriam sem que os nazistas sujassem as mãos, graças a dias, semanas, meses a fio de trabalho forçado, extenuante, que consumia qualquer força, qualquer saúde.
Incrível como, apesar de todo esse cenário, ainda havia espaço para a esperança, para a resistência. Havia espécies de jornais clandestinos dentro do campo, e algumas paredes guardam até hoje inscrições de fé, de amor, de sobrevivência. Alguns desenhavam ou cravavam no concreto sua própria literatura. Havia esperança. Ainda que mal pudessem caminhar aqueles poucos que foram encontrados no dia em que o exército vermelho derrotou a Alemanha e libertou os prisioneiros. Havia vida pulsando. Conheci, no Brasil, uma das sete crianças que nasceram no campo de Dachau, o maior da Alemanha. Hoje, aos 50 e tantos anos, ele se emociona ao lembrar do dia em que chegou ao Brasil, pelo porto do Rio de Janeiro, quando foi recebido pela imagem do Cristo de braços abertos. Do Cristo. Mesmo para um judeu, um símbolo de libertação, de amor…
Não dá para imaginar de onde tiraram forças para sobreviver a esse horror! Os dias de Sol e calor sempre me animaram, me deram energia, são uma fonte silenciosa e singela de felicidade gratuita. Como entender que, nos campos de concentração, sobre as cabeças e sob os pés daqueles homens e mulheres esfarrapados, o céu também ficava azul e a relva verdejava??? É de uma contradição enorme. A tragédia devia ficar ainda mais evidente e o horror, mais sarcástico. Nunca vou me esquecer daquele belo dia de verão. Fui só lágrimas…
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Resolvi escrever sobre aquele dia por causa da história de Tereza, personagem de Kundera em A Insustentável Leveza do Ser. “Quando uma conversa entre amigos [opositores ao regime] diante de um copo de vinho é divulgada pelo rádio, uma coisa fica evidente: o mundo transformou-se num campo de concentração. (…) é um mundo onde as pessoas vivem umas sobre as outras dia e noite. O campo de concentração é a liquidação total da vida privada. (…) nascemos nele e dele só podemos escapar com a tensão máxima de todas as nossas forças.” Tereza está certa, vivemos até hoje num campo de concentração camuflado de sociedade???!
Além do link deixado no post, sobre o Dia em Memória das Vítimas do Holocausto, fiz há um bom tempo uma matéria sobre um documentário de uma brasileira, filha de poloneses que sofreram nas mãos dos nazistas. Ela conta essa história sob uma perspectiva diferente: de alemães que tiveram familiares envolvidos. A matéria em si não ficou lá essas coisas, mas vale a pena assistir para saber um pouco mais sobre essa proposta e sobre as histórias.
Segue o link: http://www.youtube.com/watch?v=zFFj_LOcSuo