Minhas Folhas de Relva

percepções do cotidiano em letras livres

Para ser um adulto independente 31/03/2011

Filed under: Cotidiano,Intercâmbio,Saúde,Voluntariado — Aline Moraes @ 1:39 AM

Se tem alguma coisa que nunca passou pela minha cabeça foi trabalhar com crianças. Aguentar chororô, teimosia e não poder falar de igual pra igual, dar uns chacoalhões nem ignorar quando estiver de saco cheio???? Ah não… não. Isso não é pra mim. Eu não tenho a paciência necessária. Nem sangue de barata suficiente. Meu negócio é com adultos. Jovens adultos, no máximo. Talvez nem isso, muita rebeldia pro meu gosto também.

Depois desse primeiro parágrafo, o que você acha se eu contar que trabalho com adultos, mas não fiquei livre do chororô, da teimosia e da relação desigual? Não basta ser adulto pra deixar de ser criança. É precisa dar um passo maior, um passo custoso, pra completar a metamorfose e se tornar um “adulto independente“. Nunca usei essa combinação de palavras. Pra mim, adulto é adulto. É independente por princípio. Bom, isso até Setembro de 2010.

Foi naquele mês em que comecei a trabalhar em Londres pra uma ONG chamada Outward, que recebe fundos do governo pra dar suporte a pessoas com dificuldades de aprendizagem, deficiências mentais e idosos. Minha vinda para cá teve mais a ver com a experiência internacional em si do que com a experiência profissional. Mas vim decidida a aprender algo com esse campo do serviço social. Nem que servisse “apenas” pro meu crescimento pessoal.

Difícil ver no começo algum ganho pra mim. Só via desafios, mas não daqueles em que você sabe que será recompensado quando vencê-los. Parecia que a vitória seria simplesmente o fato de aprender a lidar com pessoas com learning disabilities (o termo em inglês para dificuldades de aprendizagem, que eu usarei a partir de agora no texto porque estou mais acostumada a ele, e a versão em português consegue ser ainda mais longa…rs). Aprender a ter paciência pra tratá-los como crianças e adultos ao mesmo tempo. A suavizar a voz pra fazer com que eles te ouçam. A aceitar que eles simplesmente não vão fazer o que você está dizendo e não vão discutir com você o porquê. Apenas “lidar“… Não via nenhuma possibilidade de mudar a vida daquelas pessoas, porque qualquer esforço ficaria aquém de suas profundas deficiências. Essa foi a sensação que tive quando conheci meu primeiro projeto.

Non-verbal communication

Eu não poderia acabar com a Síndrome de Tourette e o autismo do DO*, nem com a dupla personalidade do TO* ou com a Síndrome de Down da DS*. Não poderia ensiná-los a falar. Muito menos a ler e escrever. Nem ajudá-los a encontrar um emprego, a se matricular num curso superior ou a atingir um grande objetivo na vida. Eles são pessoas limitadas pelos seus corpos e neurônios. Sem hipocrisia, porque eles de fato o são. Nesse projeto, eles precisam de suporte 24 horas por dia, 7 dias por semana, até pra tomar banho. Mal conseguem se expressar verbalmente. Não dá para engatar uma conversa e tentar, ao menos, dar algum tipo de apoio emocional.

Quando eu li, no support plan deles, que as principais sessões de skills teaching envolviam aprender a colocar a roupa na máquina de lavar, preparar um lanche de presunto e lavar a louça depois do almoço, desanimei. Que coisa pequena…! E que vida mais triste contar que, no final de semana, arrumaram o quarto, lavaram a roupa de cama e passaram aspirador de pó na casa – como eu já ouvi zilhares de vezes de outros service users da ONG.

“A vida é mais do que isso!”, é o que sempre passava pela minha cabeça. E ainda passa. Porque a vida é mesmo muito mais, e não podemos perder isso de vista. Nem eu, nem você, nem as pessoas com learning disabilities, por mais limitadas que as suas deficiências as façam. Contudo, compreendi que a vida, para um adulto independente, começa com essas pequenas coisas… Compreendi há um mês atrás, mais ou menos. Talvez menos. E não foi por insistência do discurso da ONG não.

Eu vim pra Londres sem nunca ter morado longe dos meus pais. Sem nunca ter lavado uma roupa, cozinhado um almoço todo ou depender de mim mesma (e ter que dar puxão de orelha nos outros) pra ver a casa limpa. Hoje, descer o cesto de roupa suja e, depois, sentir o cheiro gostoso de roupa limpa, é um momento de singela alegria. Ver a cozinha ficar mais limpa quando é a minha vez de limpá-la dá até borboletas no estômago. Preparar cogumelo assado com um recheio experimental supimpa e fazer a salada mais invejada de toda a Upper Walthamstow Road é simplesmente… orgasmic! São as minhas pequenas vitórias cotidianas que, pra falar a verdade, são grandes. Posso não contar pros pais e amigos todo o final de semana “Ai, sabe o que eu fiz? Passei aspirador no meu quarto!”, mas sem dúvida a temática fará parte da minha agenda de assuntos se eu cozinhar algo diferente e der certo (como os cogumelos, que eu AINDA não contei pra minha Mamis rs), ou se tiver rolado treta na casa por causa das tarefas de limpeza que alguém deixou de fazer (e, acredite, isso já deu muuuuuita treta…).

Mente humana...

A compreensão veio, afinal, quando encontrei alguma igualdade entre eu e meus service users: estamos todos aprendendo a ser adultos independentes! Claro que em ritmos diferentes, mas o fato é que estamos juntos nesse processo. E reconhecer isso é de extrema importância, pois eu vivo com outros voluntários que estão insatisfeitos com o trabalho e mal conseguem organizar o próprio quarto e limpar a sujeira depois de cozinhar, e dizem não ver a bagunça que deixaram pra trás na sala. São dependentes e nem parecem estar muito a fim de alcançar a independência pela qual trabalhamos para os nossos service users.

As vitórias cotidianas não têm o mesmo brilho para os olhos alheios, eu sei. Por isso é difícil mesmo reconhecer o que é importante para o outro. Semana passada eu levei alguns dos meus service users ao Outward Achievement Awards 2010, o prêmio que a ONG oferece aos service users que alcançaram algo bacana em suas vidas no último ano. O primeiro pensamento que me ocorreu foi “vixe, nunca que meus service users serão indicados pro prêmio”. Sim, a maioria dos que ganharam são pessoas mais independentes, que foram indicadas por sua participação ativa na comunidade, por terem vencido barreiras e seguido em frente com um curso superior, ou por se destacarem no trabalho. São pessoas com learning disabilities lutando por inclusão e para viverem da forma mais normal possível. Deve ser o máximo ajudar alguém a ultrapassar os limites de sua deficiência e ir tão longe.

Mas, ao mesmo tempo, entre os vencedores estava um service user que foi indicado por conseguir se condicionar a dormir mais cedo e acordar mais cedo, e a fazer as tarefas de casa. Para ele deve ter sido uma vitória e tanto. E mais bacana ainda de quem percebeu que, naquele detalhe (que seria pequeno na vida de qualquer pessoa normal), havia um potencial vencedor. E essa pessoa se provou certa.

Tudo isso tem a ver com entender que, independente das limitações, estamos todos lutando para ser um pouquinho mais independente e viver a vida ao máximo nesse mundo caótico que não respeita ninguém (sejamos nós sãos ou deficientes). Há duas semanas, duas das minhas service users, DL* e JH*, deram uma festa de aniversário na casa delas. E foi super legal! Elas se divertiram como nunca (e eu bem sei o valor de uma festa de aniversário marcante). Além delas, levei TO* e conhecia vários outros service users, com os quais eu converso e interajo na Friday Night Disco e em outros grupos que a Outward promove. E na festa não foi diferente. Aposto que, em momentos como aquele, em que dançamos, cantamos juntos, tiramos fotos e fofocamos (o irmão da JH veio me contar que uma outra service user pediu o telefone dele! Sim, ela tem bom gosto e de boba não tem nada, pois ele é uma quarentão gatíssimo! hehe) eles se sentem menos diferentes. E eu me sinto uma pessoa mais aberta a aceitar o diferente. E o faço sem hipocrisias ou demagogias.

É passo após passo, para todos

O que nos separa é o tamanho e a velocidade do passo pra alcançar a tal independência. Porque, no fundo, o que todos queremos é o mesmo: sentir que estamos no controle de nossa vida e ter momentos de prazer por vivê-la – seja dando uma mega festa de aniversário ou comendo sua torta favorita no seu pub favorito (o que, para um autista, tem que acontecer toda a semana, não é, DO?). As necessidades são humanas, como todos nós.

* Nós sempre usamos a sigla dos nomes para nos referir aos service users, por motivo de segurança sobre suas informações pessoais. Achei melhor seguir o procedimento aqui também.

 

2 Responses to “Para ser um adulto independente”

  1. Eba, até que enfim contando um pouco do seu trabalho ai! (você já tinha falado mais dele antes? porque se já, eu perdi!hehe). Bom, achei ótimo todo esse auto-aprendizado – tanto seu, quanto das pessoas que você assiste. No final das contas, a gente só quer se tornar um adulto independente mesmo. Esses dias, meu pai me ligou para pedir a receita certa de uma sobremesa de pêra com vinho que fiz para eles, há algum tempo. Meu Deuz! Me senti muito crescida! Vai entender…
    Bobeirinhas assim, né?
    Bjos e volte logo! =D

  2. MariPassos Says:

    Nossa Aline, quem diria hein? É muito bom ver que você tem aprendido coisas maravilhosas e pode ter certeza, que mesmo a distância, também aprendi com seu texto. Até me emocionei, por ver que você tem as suas conquistas diárias, que você tem ajudado pessoas a conseguirem o mesmo e por ver que eu preciso valorizar mais o que vivo. Vc vai voltar com outros parâmetros sobre a vida, o que vai te ajudar muito (ou já está ajudando) na sua transformação pessoal. Parabéns por tudo isso!


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